Como toda boa discussão, comecemos com uma pergunta. Como
toda grande descoberta, iniciemos através de uma questão universal.
O que qualifica uma historia a ser transposta para a
linguagem cinematográfica? Essa questão pode ter como subtítulo, ou até mesmo
uma legenda explicativa, a seguinte colocação: existe algo na linguagem
cinematográfica, enquanto arte, e não enquanto indústria cultural, que,
imortaliza uma história, tornando-a algo único, algo que, acabado, toma vida,
adquire o status de obra, que sobrevive o passar de épocas no nosso imaginário.
Cientes de que isso ocorre, de que, na tentativa de
revalidar a distinção dialética adorniana de arte vs comercial, estabelecida
pelo autor alemão em seu texto “Indústria cultural”, retomemos de maneira
simplória, porém necessária, uma definição simples para o cinema como arte que
é: arte é aquilo que incita a reflexão, versus o “comercial” aquilo que
reproduz padrões, fórmulas, um local onde o novo possui um aspecto meramente
aparente, para produzir a ilusão de pluralidade, quando na verdade, estamos
inseridos numa mar de “mesmices”.
Ok. Pegamos a ideia, cinema como arte, agora me dê um
exemplo.
Ok.Aqui está. “Bronson” de Nicolas Winding Refn, eis uma obra
de arte. É claro que, escolhê-la como uma representante padrão da todas as
obras de arte, é uma escolha pobre, dado o universo de obras, sejam de Bergman,
Tarkovsky que poderiam ilustrar melhor o conceito, porém, essa escolha foi
feita estrategicamente, pois ela oferece elementos de fácil compreensão que
justificam a legitimidade da sua posição neste curto texto, os quais irão nos ajudar a
demonstrar quase que geometricamente para o leitor, o que queremos dizer
quando falamos em cinema como arte contraposto quase que heroicamente ao cinema
comercial, enquanto representante do padrão, da fórmula meramente vendável.
Falemos de “Bronson”. Lembrando que essa análise não visa,
fazer uma crítica do filme, pelo menos não no sentido tradicional, a ideia, o
desejo, a vontade que nos move, é a de mostrar os elementos utilizados neste
filme, que o separam de filmes convencionais. Para fazê-lo escolhemos um tema,
que para nós é central em “Bronson”, entra no palco, a violência.
Seria “Bronson” um filme sobre a violência? Defendemos que esta representa um caminho, uma ferramenta e não um fim. Pra ilustrar tal
posição, basta percebermos que as cenas de lutas e explosões de fúria do
protagonista não são coreografadas esteticamente nem nada do tipo, e isso
possui uma razão. A violência ali, não é o fim, é o meio através do qual o
filme nos mostra o processo de degradação da personagem, uma característica chave da biografia ficcional
do indivíduo em questão .
O filme ilustra esse processo através das jaulas nas quais
o personagem vai sendo colocado. A violência é misturada com cenas claramente performáticas
de teatro onde o protagonista se utiliza da forma específica possibilitada
pelo cinema pra conduzir a narrativa de sua própria historia. Esse encadeamento
único torna o filme uma obra especial.
Falemos um pouco mais especificamente do filme. Trata-se da
historia de um prisioneiro britânico que ficou conhecido por ser extremamente
violento, impossível de ser pacificamente contido numa cela de prisão. Ok. Esse
é todo o gancho para a história, e através da mera leitura desse gancho poderíamos
confundi-lo com um filme de ação, onde alguma espécie de “bad boy” americano
trava lutas fantásticas com indivíduos moralmente inferiores, saindo vitorioso
de todas elas até que no final, ele ficasse com a moça bonita e seguisse em
frente para viver o “american way of life”. Tudo isso com a constante aprovação
e torcida do espectador.
Agora entra “Bronson”: um protagonista odioso, em que nenhum
momento articula manipulações fílmicas óbvias para que gostemos, torçamos, ou
queiramos um final feliz para ele. O filme nos dá um protagonista de quem não
gostamos, nos dá um “vilão” supondo que as estruturas maniqueístas do filme
ideológico ainda valham alguma coisa. Porém, porque isso é válido? Porque é na
complexidade do protagonista, assim como na forma artística com que ele se
apresenta e se desenvolve no filme que percebemos que essa não é uma historia
convencional. O que distingue esse filme num primeiro momento é justamente o
fato de que ele não se esforça para que aprovemos seu protagonista, isso não é
relevante para a historia, e a ausência desse interesse no roteiro é que
ilustra a proximidade desse filme com a forma artística, ele é destituído de
ideologia no sentido do filme “fórmula” hollywodiano. Ele não está preocupado
em criar uma afetividade entre o espectador e o personagem.
Mostra-se assim que o filme é em si só, autônomo, à maneira
de Adorno na “Indústria Cultural”. No filme comercial estabelece-se uma relação
quase que dialética entre o espectador e a obra, de forma que as lacunas
deixadas pela obra são preenchidas pelo emocional do espectador, ele associa-se
afetivamente a obra, ele “gosta” do “herói” ele odeia o “vilão”. No filme-arte,
essa relação simbiótica não é necessária, o filme existe em si, indiferente do
grau de comprometimento emocional do espectador. Aqui a questão não é gostar do
“Bronson” e sim preencher intelectualmente as lacunas da historia: porque ele é
tão violento? Por mero reconhecimento social? Por questões culturais e sociais?
Por alguma espécie de relação frustrada edípica com a mãe? O filme nos dá indícios
que possibilitam uma rica discussão acerca dessas questões, quando, por
exemplo, nos dá uma cena em que o protagonista segura objetos de formato fálico
de maneira quase que erótica. O filme nos fornece pistas, para múltiplas
reflexões acerca das intenções do personagem, de suas motivações, seus
objetivos, assim como seus interesses, desejos, e acontecimento possíveis no
seu passado, como por exemplo a cena em que ele se encontra com o seu tio, uma
espécie de cafetão, o qual coloca a mão na sua coxa de maneira discreta,
sugerindo um possível abuso sexual na infância.
Esse processo de esmiuçar o filme, de tentar arduamente,
colher seus elementos e supor suas significações, é justamente o que justifica qualifica-lo
como obra de arte.
Um filme comercial não possibilita análises semelhantes,
ele pode representar sim, enquanto obra de certo período histórico-social,
elementos que nos permitam analisar a sociedade, a partir da percepção de sua
popularidade num sentido de estudo cultural, como feito por Douglas Kellner em “Cultura
da Mídia”, porém, não nos permite inquirir acerca de seus elementos, tais são
óbvios, desprovidos de significações múltiplas, desprovidos de múltiplos
simbolismos, esse tipo de filme não incita o refletir sobre ele, apenas
possibilita inquirir que tipo de sociedade aprova as condutas de personagens
como “Rocky” “Rambo” “John Maclane” etc.....eles são meros indícios dos
interesses dos realizadores do filme acerca do tipo de conduta que aprovam, e que querem ver reproduzida no espectador. A
afetividade que se cria com tais personagens não é acidental, ela é fruto da própria
estratégia do filme, que visa impor modos de vida, padrões de beleza, de
conduta, de comportamento,de consumo, etc.....esse tipo de filme age sobre o
espectador tornando-o passivo no sentido da legitimação ideológica como
defendida por Marx.
Com essa nova discussão,a questão que surge é: pensar um filme de arte em oposição a um filme de
ideologia,pensar Refn contraposto a Michael bay. Essa distinção precisa ser resgatada, porque é nela que sobrevive a possibilidade da arte na era do padrão.
E é desse resgate que surge uma questão ainda mais relevante, a qual transcende a mera oposição comercial X arte, e tal questão resume-se a uma assertiva esclarecedora:
Não há fórmula para um filme de arte, não há fórmula para “Bronson”, “Drive”, “Only God Forgives”, “O guerreiro silencioso” com todas as
ressalvas críticas guardas com relação a esses filmes de Nicolas Refn.
Não dá pra fazer uma série da netflix, sobre esse filme, não
dá pra fazer “Bronson 2 – o retorno da violência”, esse filme não carrega a
estrutura simplista superficial, necessária para reprodução padronizada de
determinados elementos que poderiam ter feito sucesso.
O filme imortaliza, no uso inteligente da forma, conteúdo e linguagem especificamente cinematográficos, uma maneira única de contar essa história, nasce ali na tela, algo que não pode mais ser transposto para nenhuma outra linguagem narrativa. E a tendência é que esse algo que nasce ali, irá permanecer na história do cinema.
Lucas Soares e Patrícia Oliveira
Lucas Soares e Patrícia Oliveira